PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Gilberto Gil está de volta à estrada após um hiato de reclusão forçada pelo luto de sua filha, Preta. Com a serenidade que tem marcado sua velhice, fez a grandiosa apresentação de sua turnê de despedida em Porto Alegre, no último sábado, incluindo uma participação de Adriana Calcanhotto.
A turnê já chegou à metade, e começa um momento de balanço. Dois dias antes da performance na capital gaúcha, Gil lançou um livro que registra para a posteridade essa leva final de shows, “Tempo Rei”.
A obra sai por sua editora familiar, a Gege Edições Musicais, capitaneada por sua esposa e produtora Flora Gil com projeto gráfico do casal Daniel Kondo e Adriana Fernandes. Cada música apresentada na turnê vem acompanhada de uma cifra simplificada feita por Sergio Chiavazzolli, seu colaborador antigo.
As páginas do livro retratam os momentos mais marcantes de Gil no palco no último ano -por exemplo, ao cantar “Drão” ao lado de Preta e apresentar “Cálice” olhando, pesaroso, para fotos de protesto contra a ditadura militar exibidas no telão. O livro vem a público bem quando o Supremo Tribunal Federal realiza o julgamento histórico de uma cúpula militar acusada de outra tentativa de golpe.
“É o que eu espero que a sociedade brasileira faça”, diz o compositor, minutos antes do evento de lançamento, no Instituto Ling. “Responsabilizar o maior número possível daqueles que participaram dessa intentona, dessa tentativa de golpe de Estado.”
As investigações, segundo o ex-ministro da Cultura do primeiro governo Lula, foram “suficientemente conclusivas” para estabelecer quem foi responsável pelo quê -e agora é a hora de o tribunal se incumbir de apontar inocentes e culpados.
“Isso é diferente do que aconteceu após a ditadura militar, em que esses processos não foram instalados”, aponta o cantor, que foi preso pela repressão do regime e se exilou por dois anos em Londres. “Denota um grau mais claro de amadurecimento da sociedade brasileira, especialmente das instituições incumbidas de zelar pelo exercício do poder civil, democrático.”
Falar de um acontecimento presente enquanto remete a ecos do passado e projeta possibilidades de futuro é atitude característica de Gil –boa parte da concepção visual da nova turnê é inspirada nessa mistura de temporalidades, num entendimento do tempo como espiralar, não linear.
Gil já declarou não ter vontade de recontar sua história por um mecanismo tradicional como uma autobiografia ou um livro de memórias, a estilo por exemplo do que fez Caetano em “Verdade Tropical”.
Durante o evento desta quinta, ele reforçou a ideia de que o interessa muito mais o que se produziu sobre a tropicália, as interpretações dos outros sobre sua obra, do que qualquer coisa que ele mesmo tenha a dizer sobre o que fez.
“O que o mundo fala de mim é suficiente, porque o que eu fiz foi feito para o mundo, para as pessoas reagirem ao meu trabalho”, diz ele ao repórter, reforçando não “ver vantagem” em registrar suas memórias, com um porém significativo.
“Às vezes penso em escrever ensaios soltos a respeito das coisas que me interessam no campo da arte, da música, das ciências humanas, das ciências naturais”, afirma, acrescentando não ter um projeto bem delineado em vista.
É uma vontade que vem e passa, segundo Gil, mas parece mais sedimentada nesses três anos em que reforçou a convivência com os colegas imortais da Academia Brasileira de Letras, a ABL. “São pessoas com muita experiência de vidas decantadas, muitos egressos de campos distantes do meu interesse mais direto. O convívio com essa gente tem interesse particular para mim.”
E, em breve, Gil deve ter um pouco mais de tempo livre. “Talvez encerrando esse ciclo de apresentações de shows, essa atividade mais intensa, talvez aí eu tenha uma vontade mais focada de escrever alguma coisa. Mas ainda não comecei a esboçar roteiros.”
É bom pontuar que a obra de Gil já vem se decantando há algum tempo em livros, como a parceria com o pesquisador Carlos Rennó para a publicação de suas letras reunidas e com Kondo, artista gráfico e designer experiente, para transformar algumas de suas principais composições em obras ilustradas.
Já fez isso com “Nós, a Gente”, “Andar com Fé” e “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, por exemplo, e agora lança “Refazenda” no cinquentenário da canção. O ilustrador reitera a liberdade artística que Gil conferiu às criações, como se insistisse que aquelas palavras fossem reinterpretadas por outros olhos e sensibilidades.
É a mesma impressão de Rafael Dragaud, diretor artístico da turnê. “A gente nunca vai entender o Gil inteiramente, mas eu tenho uma sensação de que ele está muito acostumado a ser interpretado livremente. É muito à vontade com isso.”
Durante o evento de lançamento do livro, Kondo perguntou a Gil quando exatamente ele sentia que uma obra deixava de ser sua, nessa onda toda de reinterpretação alheia, por fãs tão numerosos. O compositor discordou da premissa, dizendo que a obra continuava sendo dele para sempre.
“Mas aí continua, quanticamente, ocupando dois espaços ao mesmo tempo. Um no meu coração e outro no coração das pessoas.”